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Conferência de Abertura

Por uma delicada radicalidade

A partir da ampla mobilização em prol da retomada da democracia brasileira, desenvolveram-se, entre as mais importantes conquistas no âmbito das políticas públicas, o Sistema Único de Saúde, e a Reforma Psiquiátrica, estreitamente vinculada a ele. No espaço de poucas décadas, foram fechados mais de 70 mil leitos em hospitais psiquiátricos, com o redirecionamento dos recursos aos serviços substitutivos, que se expandiram em todo o país, sustentados pela dimensão ético-política do cuidado em liberdade.

Desde o final de 2015, quando a Operação Lava-Jato, espetacularizada pela mídia, tomou a cena pública, e iniciou-se o movimento rumo ao impeachment da presidente, sucederam-se, uns após outros, retrocessos no âmbito das instituições democráticas, das políticas públicas, dos direitos do trabalhador. No fértil contexto assim criado para a proliferação de declarações fascistas e de fake news, o exaltado elogio à ditadura não impediu - pelo contrário, favoreceu - a eleição do atual presidente do país, alinhado aos movimentos populistas de direita de vários países do mundo. Ao longo de  mais de 3 anos sob seu governo, vivemos o profundo descaso pela  vida e pela sorte dos brasileiros, na negligente incompetência diante dos riscos da pandemia, na destruição da Amazônia, nos crimes brutais de policiais e milicianos, no desmantelamento dos órgãos de controle social,  no constante desrespeito à verdade, à  civilidade e à democracia em nome de uma suposta liberdade de expressão.

Tais retrocessos, que pareciam impensáveis nas décadas subsequentes ao fim do regime militar, surpreenderam todos aqueles que defendiam uma sociedade democrática e igualitária. Não se esperava que acontecessem, não poderiam ter acontecido - e aconteceram, entretanto! Como foi possível perder tanto, quando se acreditavam consolidados os ganhos, e ainda tanto se esperava avançar?

Tais acontecimentos, no entanto, se inscrevem e se explicam segundo uma história que somos chamados a reexaminar. E encontramos, ao longo de mais de cinco séculos, a colonização estrangeira, a devastação da terra, o latifúndio, a escravidão; o extermínio dos nativos, o desterro dos negros, o desamparo dos mestiços, a exploração dos imigrantes; a proclamação da independência por uma pequena elite de civis, a da república por um grupo de militares; a total ausência da participação do povo, o amplo desrespeito dos direitos, a ausência de políticas sociais.  Entrementes, um golpe militar sempre seguiu-se a outro - e , nos últimos anos, tentam todo o tempo intimidar-nos com a ameaça de mais um, buscando invalidar e deslegitimar as  eleições que se aproximam. 

Certamente, após a redemocratização do país, tivemos avanços importantes; no entanto, pode-se constatar certa ausência de ousadia, e indagar seus motivos. A esquerda no poder temia a pecha de radicalismo, caso fossem tomadas medidas mais incisivas em tantas áreas onde se faziam necessárias? Curiosa acusação seria esta, num país onde o extremismo sempre foi monopólio da direita, sob as formas da tutela, da tortura, do assassinato, da prisão.

Supõe-se muitas vezes que a coragem prejudica a prudência; que a altivez exclui a cortesia; que a aparência de radicais nos prejudica se nos mostramos firmes. No entanto, o diálogo, o respeito mútuo, a negociação, imprescindíveis na política, não são de forma alguma incompatíveis com a sustentação de posições claras, reivindicações justas, práticas de mobilização e pressão popular. Não foi desta maneira que alguns movimentos sociais conseguiram espaço e força para importantes políticas públicas e conquistas populares?

Neste momento em que estão em jogo questões de tal monta para o futuro do país, cabe lembrar que a cautela excessiva pode expor-nos a riscos iguais aos dos gestos imprudentes; que a abertura ao diálogo com o outro lado não é o mesmo que a submissão a ele; que abrir mão de princípios fundamentais significa confundir-se e deixar-se intimidar. Há concessões perigosas, acordos problemáticos, muitas vezes feitos em nome da segurança - e, no entanto, a ideia de que contentar-se com pouco é mais seguro não se mostrou de forma alguma veraz!

Afinal, urge levar em conta e tirar as consequências de acontecimentos inesperados, mas reais: o estilo moderado e conciliador com o qual se julgava possível avançar foi vencido pelo avanço de uma direita extremista e feroz. Eis a questão que se coloca para esta conferência.

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